domingo, 15 de janeiro de 2017

Superfaturamento e corrupção são as marcas das prisões com gestão privada

Para ex-diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, Julita Lemgruber, a privatização é o pior dos mundos.

Brasil de Fato | São Paulo (SP), 
No Brasil, existem 24 unidades funcionando com Parceiras Público-Privadas, com quase 14 mil presos. / Marcelo Camargo/Agência Brasil
As rebeliões ocorridas no início do mês nos presídios de Manaus (AM) e Boa Vista (RR), que vitimaram 56 e 33 presos, respectivamente, suscitaram uma série de questões sobre as condições de vida e modelo de gestão nos presídios brasileiros. A cultura do encarceramento, ancorada em leis mais rígidas, especialmente para crimes relacionados a drogas, e a manutenção das pessoas presas, com uma grande quantidade de presos provisórios nas unidades correcionais, arma a bomba relógio que é o sistema carcerário no país.
Segundo dados mais atualizados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária (Infopen), em 2014 o Brasil tinha 622 mil presos - a quarta maior população carcerária no planeta -, e apresentava um déficit de 231 mil vagas. Certamente esses números hoje são maiores. Um salto significativo no número de pessoas encarceradas ocorreu com a aprovação da Lei de Drogas (11.343), em 2006. Segundo o relatório divulgado pela Organização Não Governamental (ONG) Human Rights Watch, nesta última quinta-feira (12), em 2005, 9% dos presos no Brasil estavam detidos por crimes relacionados a drogas. Quase dez anos depois, em 2014, esse número saltou para 28%. O documento alerta ainda que “as condições desumanas nas prisões e cadeias brasileiras são um problema urgente”.
Negócios
A proposta de privatização dos presídios, por meio das Parcerias - Público-Privada (PPPs), ou mesmo a chamada gestão compartilhada - em que o Estado terceiriza serviços básicos como alimentação, limpeza, manutenção técnica, entre outros -, prenuncia a criação de mais presídios, portanto mais vagas, e um custo por preso menor do que a média nacional nos presídios dos estados, além de um tratamento mais humanizado. Mas na prática, o que tem se mostrado não é exatamente isso.
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde essas experiências tiveram início nos anos 1980, já houve condições de diagnosticar as vantagens e desvantagens destes modelos. Em agosto de 2016, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou que deixará de usar prisões privadas para presos sob custódia federal. Ainda que essa medida atinja uma pequena parcela da população presa, já que a maioria deles está sob custódia estadual, ela foi vista como uma ação simbólica e que representa uma mudança de olhar na gestão carcerária. Em um memorando, a subsecretária de Justiça, Sally Yates, afirmou: "Não oferecem [os presídios privados] o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo nível de segurança e proteção."
No Brasil, existem 24 unidades funcionando com PPPs, com quase 14 mil presos, segundo informações da Associação Brasileira de Empresas Especializadas na Prestação de Serviços a Presídios.
A empresa Umanizzare, responsável pela gestão de parte do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, palco da rebelião que resultou em 56 mortos, administra outros seis presídios: quatro no Amazonas e dois em Tocantins. Os contratos de concessão administrativa são de 27 anos com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), podendo ser prorrogado até 35 anos.
O Ministério Público solicitou ao governo amazonense o encerramento dos contratos, pois há suspeita de irregularidades como superfaturamento, mau uso do dinheiro público, conflito de interesses empresariais e ineficácia da gestão. Segundo o MP, a Umanizzare recebe R$ 4,7 mil por mês para cada preso do Compaj, sendo que a média nacional é de 2,4 mil, de acordo com as informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já em Tocantins, o Tribunal de Contas do estado aceitou o pedido do Ministério Público para realizar uma auditoria operacional no sistema carcerário.
Segundo Julita Lemgruber, socióloga e diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994, a privatização é o pior dos mundos porque traz a ilusão de que é rápido e fácil construir novas unidades prisionais e colocá-las em funcionamento. “O problema é que isso tem um custo para a sociedade. Estes contratos de Parceria-Público-Privada (PPP) são de 29, 30 anos, ou seja, o Estado se compromete em manter aquelas prisões com ocupação total por décadas”, afirma.
Pioneiro
O primeiro presídio brasileiro a operar na gestão regida pelas PPPs, e sendo privatizado desde sua construção, não opera como os presídios em Manaus, que são de gestões compartilhadas. Localizado em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), o complexo prisional completou quatro anos em janeiro, com 2.016 presos em três unidades: duas para regime fechado e uma para regime semiaberto. A empresa Gestores Prisionais Associados (GPA) recebe do governo de Minas Gerais o valor de R$ 3,5 mil por detento. Lá, não há problemas de rebeliões, pois ele não opera em situação de superlotação – dados do Infopen indicam que a taxa de ocupação dos estabelecimentos em cogestão ou privados é, em média, de 131%, quando a média nacional é de 161%.
Julita conta ainda que existe uma seleção rigorosa dos presos que irão cumprir pena nas instalações mineiras. “Eles só aceitam um tipo de perfil, que é o preso que não vai apresentar nenhum tipo de problema. Eles têm muito cuidado em filtrar quem vai para uma prisão privada. E assim, ela opera normalmente. Se tivéssemos prisões públicas com este tipo de filtro, seríamos exemplares também. E ainda recebendo valores muito mais altos do que o custo de um preso em uma prisão pública”, defende a socióloga.
Além disso, o questionamento que se levanta é que, toda a lógica de privatização impulsiona um maior encarceramento e o sucateamento das unidades públicas, encarando todo o modelo de reeducação prisional como um negócio. “O Brasil costuma ver seus problemas em curto prazo. Nós temos que olhar a longo prazo, e a privatização é um péssimo negócio econômico. Além do que, a gente sabe que nos EUA, por exemplo, essa relação de ilegalidade e de corrupção entre as empresas e os políticos é marca da privatização. Há inúmeras pesquisas que mostram que essas organizações acabam lutando por um endurecimento das leis porque elas querem manter suas prisões com 100% de ocupação. E algumas dessas prisões privadas, justamente com o objetivo de obter maior lucro, cortam custos, pagam piores salários e cortam serviços”, ressalta.
A margem de lucro das empresas que operam nos presídios brasileiros é de, pelo menos 8%, segundo dados extraídos do relatório da CPI do Sistema Carcerário, encerrada em 2015.
Falência da justiça criminal
Para a socióloga Julita Lemgruber, nas últimas décadas não houve nenhum investimento adequado na estrutura prisional, mas é preciso relacionar a crise também ao mau funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil. “Nós temos uma quantidade vergonhosa de presos provisórios (40% do total), por exemplo. E a gente já provou, por pesquisas, que a maior parte deles, quando julgados, acaba recebendo uma pena diferente da pena de prisão. Ou seja, eles ficam presos provisoriamente de forma absurdamente irregular e ilegal. Um dos problemas no Brasil é a falta de respeito às nossas leis”, afirma, citando ainda o trabalho de pesquisa realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), intitulado Ministério Público: guardião da democracia brasileira?, em que se demonstrou que o órgão não cumpre as funções que lhe foram destinadas pela Constituição de 88. “O que se percebe é que essas pessoas que integram o MP e o Judiciário são membros da elite, e uma elite que é reacionária, conservadora e punitiva”.
Leia trechos da entrevista:
Quais políticas e/ou falta delas, nos levaram à situação de barbárie que estamos presenciando hoje nos presídios?
Um dos problemas é a falta de respeito às nossas leis. A lei é muito clara em relação à prisão provisória, por exemplo. Ela diz que só deve ficar preso provisoriamente quem tiver possibilidade de tumultuar o processo, de intimar a testemunha ou pôr em risco a ordem pública. Na verdade, o nosso Judiciário e o Ministério Público, extremamente conservador e elitista, acabam usando essa referência ao risco à ordem pública como estratégia para manter as pessoas presas, quando a gente sabe que a grande maioria dos presos que povoam as prisões neste país são pessoas que não são violentas e que não são perigosas. Eu não estou defendendo a impunidade. As leis devem ser cumpridas. O problema é que a gente acaba privando da liberdade quem não é violento, quem não é perigoso, e que poderia ser punido com penas diferentes da pena de prisão, com penas alternativas ou prestação de serviços à comunidade, por exemplo. Enquanto sociedade, nós aplaudimos o Judiciário que escolhe prioritariamente a privação de liberdade como punição. Até mesmo porque é uma forma de controle social cara e que não transforma criminosos em não criminosos.
O objetivo desta estratégia em se manter as pessoas presas é uma forma de publicidade frente a essa sociedade?
Nós, enquanto sociedade, não ganhamos absolutamente nada com isso. É ilusório acreditar que taxa de criminalidade tem alguma relação com número de presos. Inúmeras pesquisas em vários países do mundo já demonstraram que a taxa de encarceramento não provoca reduções proporcionais na taxa de criminalidade. Agora, há essa crença fantástica de que a pena de prisão é o castigo por excelência que precisa ser distribuído. O que a gente sabe é que a pena de prisão serve de forma seletiva. Nestes casos, pessoas de outro extrato social que estão sendo punidas em forma de prisão, é ponto fora da curva. Porque meia dúzia de executivos de empreiteiras, ou de políticos que estão sendo encarcerados não é prova de que a lei é igual pra todos. A regra é que a pena de prisão foi feita para o pobre. Você não encontra, em sua quase totalidade dos presos, pessoas de extratos sociais mais privilegiados. Essas pessoas podem pagar bons advogados e se safam da cadeia.
A Lei de Drogas fortalece a cultura do encarceramento?
A Lei de Drogas é a legislação que retrata com fidelidade essa seletividade do sistema penal. É uma lei que dá margem ao Judiciário para condenar como traficante o jovem negro da favela que ou é usuário ou é aquele que está fazendo um pequeno tráfico, muitas vezes pra financiar o seu próprio consumo. Se você examina o usuário da zona sul do Rio de Janeiro, ou dos Jardins, em São Paulo, você vai ver que rotineiramente essas pessoas são paradas pela polícia e não são levadas para a cadeia, nem são rotuladas de traficante. A nossa legislação na área de drogas dá margem ao sistema de justiça criminal a rotular como traficante o pobre, negro, favelado, que porta pequenas quantidades de drogas para o seu próprio consumo.
Quais questões a senhora apontaria para mudar esse cenário?
O próprio Gilmar Mendes tem defendido, nos últimos dias, mutirões carcerários, descriminalização do uso de droga… Ele, como ministro do STF, tem sido lúcido nesta avaliação, e teve uma atuação importante no Conselho Nacional de Justiça que determinou mutirões carcerários que realmente contribuíram na redução de presos provisórios no país. O cardápio de ações está posto. Não é novidade para ninguém, todo mundo sabe o que precisa ser feito. Mas precisa ter vontade política para fazer e não pode ter medo da opinião pública.

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